A 19 de outubro de 1913, em uma chácara no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, nasce Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes, segundo filho de Lidia Cruz de Moraes e Clodoaldo Pereira da Silva Moraes. Antes dele, viria Lygia (1911) e, depois, Laetitia, (1916) e Helius (1918). O nome, de grafia antiga como o dos irmãos, seria alterado por ele mesmo, aos 9 anos de idade, para Vinicius de Moraes em um cartório da cidade. O futuro poeta mostra assim, desde cedo, o gosto pelas formas simples que marcaria sua obra.
O sangue artístico já corre nas veias. Lidia, assim como a mãe, Celestina Wamosy de Macedo, avó de Vinicius, toca piano com maestria. Já o pai do garoto, ex-professor de francês, é um poeta amador que segue o exemplo dos parnasianos, se preocupa com a forma, não abre mão das rimas e prefere a objetividade. Tímido, Clodoaldo não publicará nenhum de seus escritos, mantendo-os escondidos em sua gaveta, onde Vinicius, de vez em quando, procura inspiração ou simplesmente furta versos do pai.
É dessa mágica gaveta que sai o poema entregue por Vinicius para a sua primeira paixão – a primeira de uma gigantesca fila. Aos 9, o futuro poetinha quer conquistar a colega de classe Maria Cacimiran, apelidada de Cacy, da Escola Afrânio Peixoto, em Botafogo, onde estuda com sua irmã mais velha. Ainda inexperiente na arte da lábia, o garoto rouba do pai os seguintes versos, dos quais muda apenas o último, já deixando antever o seu pendor para os diminutivos:
“Quantas saudades eu tenho
De ti oh flor primorosa
Quem em tudo és gentil e meiga
Que em tudo és tão graciosa
Oh quantas saudades quantas
De ti meu bem lá se vão
Como uma garça voando
Cerrando o meu coração
Se eu pudesse descrevê-las
Oh quantas, quantas não são
Mas só de ti, são só tuas
Cacizinha do meu coração
Anos mais tarde, em entrevista à TV Tupi, Vinicius assume o “delito” e diz que foi a partir daí, ao tomar vergonha na cara, que ele decidiu escrever os próprios versos.
“Ele era um menino de classe média carioca, normal, levado. Brincava muito, foi o filho mais mimado, porque era especial mesmo”, diz Susana Moraes, filha mais velha do poeta.
A paixão por mulheres se mostra assim, desde cedo, o combustível para colocar sentimentos no papel. Ao longo da vida, o carioca se casará oficialmente nove vezes, com pouco ou nenhum intervalo de tempo entre uma união e outra. Para elas, escreverá inúmeras poesias e canções que se tornarão famosas no Brasil e, em alguns casos, também fora dele.
“Ele não conseguia ficar sozinho. Não aceitava a vida se não estivesse em estado de paixão. Não só pelas mulheres, mas também pelos amigos, de quem tinha muito ciúme. Ele não admitia o tédio, a monotonia. Quando a paixão se tornava ‘só’ amor, já era insuficiente”, conta José Castello, autor da biografia Vinicius de Moraes: o Poeta da Paixão, lançada pela Companhia das Letras.
Como contraponto, o amor e a amizade se encontram com a religião, que também fará parte da formação criativa e existencial do poeta. Aos 11 anos, ele entra para o Colégio Santo Inácio, comandado por padres jesuítas, onde vive crises existenciais ao ver em choque os desejos da carne e as exigências do espírito. O período de carola é compensado pelo contato inicial com estudos de arte. Para fazer parte do coral da igreja durante as missas dominicais do colégio, ele terá aulas de violão e de canto.
A influência do catolicismo é vista em muitos textos da sua produção inicial. Um dos mais importantes é A Transfiguração da Montanha, seu primeiro poema publicado. Impresso em 1932 na revista católica A Ordem, o texto dá sinais das contradições vividas pelo poeta. Nos últimos versos, em que dá sua definição de Deus, ele diz: “És o pranto dos olhos/ E o riso da boca/ És o sofrimento do mundo/ Numa promessa de eterna felicidade/ És Deus/ Deus que vê todas as coisas e a todas dá remédio/ E que é o único perdão:/Amém”.
Quase quarenta anos mais tarde, na década de 1970, Vinicius se converterá ao candomblé como filho de Oxalá, o orixá da criação. Do candomblé, ele vai tirar inspiração para os afro-sambas compostos com Baden Powell, como Canto de Ossanha.
Faculdade e primeiros livros – Aos 17 anos, em 1930, Vinicius entra para a Faculdade de Direito do Catete, onde enfrenta o rito de passagem de menino ingênuo, criado em colégio jesuíta e protegido pela família de classe média, para a fase adulta. Apesar da falta de interesse no curso, leva os estudos até o fim. Em paralelo, dá os primeiros passos rumo a uma vida boêmia e rodeada por artistas.
No começo, ele esconde o gosto de escrever dos colegas, até o dia em que anuncia o lançamento do primeiro livro, O Caminho para a Distância. Publicado em 1933, o título é logo seguido por Forma e Exegese, editado um ano depois, aos 21 anos.
“A poesia inicial de Vinicius, na década de 1930, tem uma característica mais séria, racional, com influências neo-simbolistas, românticas e religiosas, e formas tradicionais. Aos poucos, ele começa a inserir o humor e a ironia”, explica Susanna Busato, professora de poesia brasileira da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Aos 23 anos, mais pelo dinheiro que pelo interesse ou por vocação, o poetinha assume o cargo de censor cinematográfico no Ministério da Educação, posto que dá início à sua carreira pública. Pouco afeito à função, apresentou baixo resultado no posto: por exemplo, nunca barrou filme nenhum.
Amigos e amores – No mesmo ano, se torna amigo de Manuel Bandeira, a quem apelida de “paizinho”. O poeta pernambucano vai ser um dos muitos artistas a influenciar o trabalho de Vinicius. Outros que exercerão esse poder sobre ele serão os artistas plásticos Cândido Portinari e Di Cavalcanti e os escritores Rubem Braga, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino, entre outros.
Em 1938, Vinicius conhece Beatriz Azevedo de Mello, a Tati, sua primeira esposa e mãe de dois de seus filhos: Susana (1940) e Pedro (1942). Rica, bem educada e já noiva, Tati se apaixona por Vinicius e larga tudo para viver um amor marcante, embora repleto de altos e baixos. No mesmo ano, ele ganha uma concorrida bolsa do Conselho Britânico para estudar língua e literatura inglesa em Oxford, na Inglaterra. Já na Europa, ele se casa com Tati, que ainda está no Brasil, por procuração e às escondidas das autoridades da Magdalen College, já que a instituição em que Vinicius estuda não aceita homens casados.
Tati viaja em seguida e se instala em Londres. Os dois se encontram discretamente, em um período fértil para a produção literária do poeta. É nessa fase que ele escreve alguns dos seus mais importantes sonetos, entre eles o clássico Soneto de Fidelidade, que, apesar de dedicado à primeira mulher, permite entrever sua alma afeita a paixões que vêm e vão: “Eu possa lhe dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”.
“Eu não tinha noção de que Vinicius era um gênio, quando eu era pequena. Quando meus amigos do colégio perguntavam e eu dizia que meu pai era poeta, eles achavam estranho. Depois, descobri que falar que ele era diplomata pegava muito melhor”, conta Susana Moraes.
O casal retorna para o Rio de Janeiro em 1940. Em 1943, Vinicius é nomeado para trabalhar na Divisão Cultural da Secretaria de Estado e divide seu tempo entre o emprego que tem por obrigação e a agitada vida noturna junto à nata artística do Rio de Janeiro.
Paixão antes do amor – A aparente paz ao lado de Tati é colocada em xeque em 1945, quando ele se apaixona por Regina de Pederneiras, sua segunda esposa. Conturbado e repleto de ciúme, o relacionamento não dura nem um ano, e Vinicius retorna para a mãe de seus filhos. Em 1946, é nomeado vice-cônsul do Brasil em Los Angeles, para onde se muda com a família. Nessa época, estuda jazz e se envolve com o cinema.
Em 1951, retorna para o Brasil e conhece Lila Bôscoli, bisneta de Chiquinha Gonzaga e irmã do amigo Ronaldo Bôscoli, futuro marido de Elis Regina. Lila será a terceira esposa de Vinicius, para quem ele escreve A Hora Íntima (“Quem vai pagar o enterro e as flores/ Se eu me morrer de amores?”), poema que será publicado em 1959, e o famoso Soneto do Amor Total (“E de te amar assim muito e amiúde,/ É que um dia em teu corpo de repente/ Hei de morrer de amar mais do que pude”).
Ao trocar Tati por Lila, deixa tudo o que tem para trás, atitude que repetirá outras vezes, mais por culpa que por bondade. “Ele costumava dizer que, ao deixar uma esposa, só levava consigo a escova de dentes e seu retrato pintado por Portinari”, conta Castello.
Por esse desapego, vive dificuldades financeiras ao lado da nova mulher, com quem tem duas filhas: Georgiana (1953) e Luciana (1956). Para aumentar o orçamento, começa a escrever para o semanário Flan, do jornal Última Hora, sob a identidade de “Helenice”, uma conselheira amorosa encarregada de responder às cartas de leitores. O tom insolente e picante faz com que ele permaneça poucas edições na pele do pseudônimo até ser substituído por Nelson Rodrigues, sob o nome de Suzana Flag. No mesmo período, colabora como crítico cultural com o jornal A Vanguarda, editado por João Cabral de Melo Neto.
A carreira jornalística, principalmente focada em analisar lançamentos de cinema e música, se consolidará em outras publicações, como a revista Fatos e Fotos e o Diário Carioca, na década de 1960.
Depois de Lila, mais seis esposas oficiais vão cruzar o caminho do poeta e levá-lo a diferentes experiências. Avesso à solidão, ele emenda um relacionamento no outro. A quarta a dividir a casa com Vinicius é Lucinha Proença, entre 1957 e 1962, considerada a maior paixão da vida do poeta, para quem ele escreveu Para Viver um Grande Amor e com quem, mesmo depois do fim, tentou reatar diversas vezes, sem sucesso. Em seguida, entre 1962 e 1967, casa-se com Nelita de Abreu Rocha, que testemunha o auge da carreira internacional de Vinicius, com estouro de Garota de Ipanema.
“Vinicius sempre se orgulhava de dizer que foi ele quem terminou os nove casamentos, fora os namoros. Por que ele terminava? Porque a paixão tinha acabado. Acabou a paixão, entrou o amor — que inclui a rotina, os filhos, os problemas do dia a dia — e a relação deixava de interessá-lo”, diz o biógrafo José Castello.
A sexta mulher é Cristina Gurjão, 26 anos mais nova que ele. Os dois se casam em 1969 e enfrentam dias conturbados e repletos de brigas. O relacionamento dura apenas um ano e dá ao poeta a última filha, Maria (1970). Enquanto Cristina está grávida, Vinicius inicia o relacionamento com a sétima esposa, a atriz Gessy Gesse, com quem se une em 1970 e se muda para a Bahia. Ela, com 31 anos, e Vinicius, com 55, vivem um romance místico, envoltos pela cultura hippie e pelo candomblé, a nova religião do poeta, da qual Gessy é adepta.
Em 1976, casa-se com a universitária argentina Marta Rodríguez Santamaría, 23 anos. Outra união que dura apenas um ano. Pouco depois, em 1978, casa-se com Gilda de Queirós Mattoso, última musa do poeta, que ficará com ele até o fim.
“Vinicius investia integralmente na relação amorosa, como investia nos amigos. Fazia questão que todo mundo frequentasse nossa casa, que saíssemos juntos para jantar. Ele fazia muito esforço para viver feliz”, conta Gilda.
O esforço para unir variados grupos e pessoas tornou viável o relacionamento entre tantas mulheres que passaram pela sua vida. “Lila Bôscoli frequentava minha casa, nós saímos juntos com o novo marido dela. A Lucinha Proença, a mesma coisa. A Lelita é minha amiga até hoje. Ele tinha um relacionamento muito bom com quase todas”, diz Gilda.
Os filhos também eram levados a conviver com todos — e todas. “Eu me adequava à mulher que ele escolhesse. Me dei bem com todas, não tinha jeito”, diz a primogênita Susana, que enfatiza a honestidade do pai, desde o começo. “Ele foi sincero quando disse ‘Que seja infinito enquanto dure’. Não dá para dizer que ele enganou ninguém.”
Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Miúcha e Toquinho, em show no Canecão, em 1977
Parceiros e MPB – “Vinicius de Moraes trocou tanto de mulheres como de parceiros musicais. E, segundo ele, amou a todas elas e a todos eles. Dizia que com eles era um casamento sem sexo”, conta José Roberto Zan, professor de música popular brasileira da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O primeiro grande parceiro musical de Vinicius foi Antonio Carlos Jobim, pianista na noite carioca que, aos 29 anos, vivia endividado até ser contratado por Vinicius para musicar sua primeira peça: Orfeu da Conceição. A estreia aconteceu em 1956, no Teatro Municipal do Rio.
Nesse período, é perceptível o desejo de Vinicius de fazer música com refinamento, mas sem romper com o popular. “Orfeu é a referência desse desejo. Uma mistura shakespeariana de um mito grego transportado para a favela, com samba e atores negros. É a tragédia no morro”, conta Zan. “Com o musical, ele sai da alta cultura e começa a incursão na MPB e no movimento da bossa nova.” Surge então o apelido “poetinha”, carinhoso para alguns, sinônimo de um poeta menor para outros.
A frutífera parceria com Jobim se estende e o saca de vez de dentro do terno de diplomata, sob o qual esconde a alma de artista, para atirá-lo no centro do cenário cultural brasileiro. Entre as muitas parcerias com o pianista, destacam-se A Felicidade, Chega de Saudade e a já citada Garota de Ipanema, canção que marca época na história do Brasil e até hoje é cantada em diferentes línguas e por variados intérpretes no mundo.
Na década de 1960, a erudição dá espaço de vez para a alma do cancioneiro. Vinicius se alia aos mais variados músicos, como Baden Powell, Carlos Lyra, Francis Hime e Edu Lobo. Despido de preconceitos e com a eterna ânsia de testar de tudo um pouco, ele experimenta os mais diversos ritmos. Mistura samba com batidas africanas, mergulha na bossa nova, escreve valsa para Pixinguinha e faz músicas infantis.
“Ele tinha muitas facetas. Como disse Sergio Porto: ‘Vinicius de Moraes foi muitos. Tivesse sido um só, seria apenas Viniciu de Moral’”, diz Gilda.
O envolvimento com a música e a vida mundana fez com que a carreira no Itamaraty, responsável por sustentar o poeta, chegasse ao fim em 1969, suspensa pelo regime militar, que não achava apropriado o comportamento de Vinicius.
A aposentadoria precoce, no entanto, era desejada por ele, que a partir de então não dividiu mais seu tempo com a diplomacia e pôde se dedicar totalmente à música e às paixões.
Vinicius de Moraes e o músico Toquinho
Últimos anos – Na década de 1970, ele se alia a Toquinho, jovem músico de 24 anos que poderia ser seu neto, mas era tratado como irmão, já que, como lembra Toquinho, Vinicius “não sabia ser velho”.
“A parceria aconteceu no momento certo para cada um. Vinicius precisava de um músico que fosse jovem e disponível. E eu procurava um letrista para um baú cheio de melodias”, conta Toquinho. “Gostávamos das mesmas coisas, a música fluía no compasso do prazer de viver. Colocávamos a vida à frente da arte, e o cotidiano era a nossa maior fonte para a criatividade.”
Com Toquinho, Vinicius vive sua última década, talvez a mais rentável. Faz turnês pela Europa e compõe canções como Tarde em Itapoã, A Tonga da Mironga do Kabuletê e Para Viver um Grande Amor, entre outras.
Ao ter a juventude roubada pelo tempo e pela diabetes que se agrava em seu corpo, Vinicius bebe da mocidade da última esposa e do amigo Toquinho, que praticamente vive junto com o casal quando está no Rio de Janeiro.
Em 1979, o carioca sofre um derrame cerebral e no ano seguinte é operado para receber um dreno cerebral. “Ele não se cuidava. Não fazia exercício físico, bebia muito e era extremamente guloso. Quando eu tentava alertá-lo, ouvia um: ‘Ah, não. A vida assim é muito chata, cheia de proibições. Assim, não quero não’”, conta Gilda. “Depois da cirurgia, ele acatou apenas uma das recomendações médicas: trocou o uísque pelo vinho branco.”
Em 9 de julho de 1980, com Toquinho no quarto de hóspedes e Gilda na cama do casal, Vinicius de Moraes decide tomar um banho de banheira na madrugada. É nesse inusitado leito que o poeta morre, aos 67 anos, de edema pulmonar. O corpo é encontrado pela empregada, que acorda o amigo e a mulher.
A longa lista de amigos que colecionou ao longo da vida vai até o velório prestar a última homenagem ao poetinha. Tom Jobim não comparece. Ele e Vinicius tinham um trato de que um não iria ao velório do outro. O músico fica em casa, cantando Soneto da Separação (“Fez-se do amigo próximo, distante/ Fez-se da vida uma aventura errante/ De repente, não mais que de repente”).
“O que mais me toca é a ausência do amigo, dos papos descontraídos invadindo as madrugadas. Sinto falta de desfrutar daquela inteligência rara, da sua disposição para a vida, sempre sem bloqueios e com muita intensidade”, diz Toquinho.
Se não convenceu a todos como poeta em versos, convenceu ao menos um — o maior deles — na vida. Diante da partida de Vinicius, Carlos Drummond de Andrade sentenciou: “Entre nós (poetas), Vinicius foi o único que viveu como poeta”.
E como viveu.
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